quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Educação Física no Atendimento Socioeducativo


Texto escrito por Guilherme Astolfi Nico

Um dos interessantes campos de atuação dos profissionais de educação física é o atendimento socioeducativo. Apenas em um Estado da federação há aproximadamente 400 profissionais da área diretamente ligados à instituição executora das medidas privativas e restritivas de liberdade, além dos mais de 100 professores de educação física da rede estadual de ensino, que têm suas aulas atribuídas as respectivas salas das unidades socioeducativas vinculadas a escola pública, na qual estão lotados. 

As medidas socioeducativas - MSE são medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, aplicadas pelo judiciário e destinadas a adolescentes, entre 12 e 18 anos incompletos, a quem se atribui a prática de ato infracional, que é a conduta descrita como crime ou contravenção penal cometida por criança ou adolescente. Quando o ato infracional é praticado por criança, pessoa até 12 anos incompletos, podem ser utilizadas as medidas de proteção previstas no artigo 101 do Estatuto; já o adolescente está sujeito as medidas previstas no artigo 112 do ECA, que estabelece como medidas socioeducativas: a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a semiliberdade e a internação, além da possibilidade de aplicação também das medidas de proteção. Destaque para a exigência da lei, para que a internação ocorra em estabelecimento educacional – inciso IV do art. 112. Portanto não é apenas um desejo é uma exigência legal que toda unidade de atendimento socioeducativo seja uma escola, estabelecimento educacional voltado ao atendimento dos socioeducandos. 

A medida de internação pode durar até 3 anos.  Por conseguinte, o jovem pode permanecer institucionalizado até os 21 anos incompletos. Daí temos que a população de uma unidade socioeducativa pode variar na faixa etária dos 12 anos aos 21 anos incompletos. Lembrando que a medida de internação é a medida mais grave dentre as medidas aplicáveis, deve ser excepcional, breve e restrita a intervenção necessária, em atenção aos princípios da brevidade, da excepcionalidade e da mínima intervenção. Destarte as MSE são regidas principalmente pelo ECA e pela Lei 12.594/2012 que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE. 

Considerado o exposto nessa breve introdução, ressaltamos que as medidas socioeducativas devem se distanciar do caráter retributivo, em hipótese alguma ser comparada ao tratamento dado ao adulto - modelo penal/prisional, e ter sem dúvida inequívoca, de modo claro e certo como norteador central desse processo a responsabilização de natureza educativa, alicerçada nas ações que devem objetivar a interrupção da trajetória infracional, a reinstituição de direitos e a inclusão social, cultural, profissional, esportiva, educacional e por vezes até familiar do adolescente; enquanto sujeito de direitos e não como mero objeto de intervenção. Desiderato da doutrina da Proteção Integral. Atentando à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, com potencial e direito a desenvolvê-lo. Neste processo que visa a desaprovação da conduta infracional, a reflexão sobre as consequências lesivas do ato praticado, mas sobretudo o empoderamento do adolescente enquanto cidadão crítico e participativo na sociedade, sem deixar de lado a sua subjetividade, autonomia e protagonismo na construção do seu projeto de vida. 

Costumo dizer que, via de regra, os e as adolescentes chegam ao sistema socioeducativo por F.O. (Falta de Oportunidade), porque tudo até então falhou. Falhamos (antes, durante e depois) enquanto sociedade, Estado (titular 1º deste dever), profissionais, família e comunidade, pois somos os responsáveis conforme preconiza o art. 227 da CF por assegurar à criança, adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, abuso, maus tratos, opressão, enfim é necessário garantir com máxima prioridade todos os direitos e oportunidades efetivas para o desenvolvimento infantil e juvenil. 

O último levantamento anual do sistema socioeducativo, que é do ano de 2017, mostra que temos no Brasil aproximadamente 26 mil adolescentes em medidas privativas e restritivas de liberdade (semiliberdade, internação e no programa de internação provisória - aqueles que estão aguardando decisão judicial), e em torno de outros 120 mil adolescentes em medidas socioeducativas no meio aberto (Liberdade Assistida – LA e Prestação de Serviço à Comunidade – PSC). Embora desatualizado o levantamento retrata um cenário gigantesco, mas este enorme contingente de jovens é apenas a ponta do iceberg que retrata a dura realidade que decorrem dos problemas sociais, das desigualdades, da carência de políticas públicas prioritárias, da falta de vontade e ética política, das infinitas violações de direitos, entre outras tantas injustiças que emperram o elevador social. Enorme desafio de atuação, onde só ações articuladas e integradas podem ser eficazes diante desta situação complexa e circunstâncias cruéis do panorama atual, o qual acredito queremos reverter. Todavia somos incompletos enquanto pessoas e instituições, desta forma ninguém mais consegue dar conta do seu recado sozinho, isolado em suas ações e reféns de suas demandas diárias. É urgente a necessidade de promoção da intersetorialidade, que mais que um desejo é também uma exigência legal. Porém, quem seria ou é o responsável pela intersetorialidade das políticas, pessoas e serviços? Tecnicamente são os silenciosos conselhos de direitos, são eles os primeiros responsáveis em promover a articulação e integração Intersetorial, mas é também dever de todos nós. Bom, e onde entra a Educação Física nesse cenário? 

Bastaria o profissional de educação física que atua no SINASE contribuir como profissional que tem o objetivo de desenvolver e trabalhar a saúde desses adolescentes, e as questões procedimentais do exercício, o fazer esportivo, por exemplo? É evidente que não. Além de ser direito a escolarização, a profissionalização, a cultura, o esporte, o lazer, a prevenção, entre outros, é acima de tudo obrigação do Estado e das entidades que desenvolvem os programas de internação, art. 94 – ECA. Qual educação física desejamos então para este universo das MSEs? Pensando na internação, medida mais severa das aplicadas aos adolescentes a quem se atribui a prática do ato infracional, onde permanecem em média por 1 ano (variação para mais ou para menos de acordo com o Estado da federação em que estiver cumprindo a medida, e as vezes há variações em regiões dentro do mesmo Estado), privados de liberdade, em espaço restrito, institucionalizados, por vezes em estabelecimento verticais, inadequados, com estrutura prisional, por outras tantas vezes, insalubre, sem espaços apropriados para atividade física, negligenciada principalmente nas unidades femininas. Independente desde difícil cenário a educação física tem que contribuir efetivamente com a formação e capacitação humana dessas pessoas, mostrando caminhos possíveis, pavimentados por articulações formais e fortalecidas, com compromissos firmados por força de protocolos interinstitucionais e também agregando demais parcerias possíveis e necessárias, para que sirvam como molas propulsoras e sejam potentes gatilhos para que esses jovens cidadãos possam trilhar os caminhos que almejam, possibilitando condições mais justas, igualitárias e democráticas. 

O professor de educação física, sim professor, porque na atuação educacional somos professores, na socioeducação mais que em qualquer outro lugar, precisa ser parte estruturante da ação educativa e social voltada ao seu aluno, sim aluno. É preciso pensar, perseguir e firmar parcerias, articulações com a rede, com a comunidade, durante a medida, mas também objetivando ações pós-medida. Desejável ainda que possa cooperar com ações preventivas, mas isso é assunto para outro momento. Outro grande desafio é adequar seus objetivos considerando os interesses dos alunos, a heterogeneidade e a grande rotatividade do seu público alvo, diferente das escolas com turmas regulares anuais, seus alunos serão de diferentes idades, de níveis educacionais distintos e irão chegar, compor a turma e deixá-la em tempos diferentes. Para tanto é preciso planejar levando em consideração também estas características. De modo que os conteúdos precisam ter finitude breve, moldadas a essa realidade. Outro ponto que não é exclusividade apenas das instituições socioeducativas, mas é preponderante nesse ambiente, é a ausência de planejamento, desarticulação com o propósito institucional, prevalecendo o laissez-faire, “deixar fazer”, criando como diria Makarenko o vazio pedagógico, onde nesse buraco alguém imaginaria que poderia atuar, ocupar o espaço, ou ainda entender que pode desenvolver atividades de educação física, porque seria simples,  factível por qualquer pessoa, pois quando observada se resume ao famoso TDJ, conhecido nas instituições socioeducativas de internação, que é o Tira (dos alojamentos, as vezes celas) Divide (em times) e Joga, em outras vezes nem isso. Além das dificuldades materiais e arquitetônicas, há em diversos locais, aceitação e até celebração do charlatanismo, demonstrando descaso com o melhor nível profissional que é esperado do professor, que por vezes apenas adota a postura de observar o fazer, em outras palavras, o total laissez-faire. 

Sustento que o papel do professor de educação física no atendimento socioeducativo deve ser semelhante mas deve ir além ao do professor da educação formal, ou seja, abordar os conteúdos da cultura corporal de movimento, versando sempre as dimensões do conteúdo (conceitual, atitudinal e procedimental), com planejamento prévio sistematizado e com propósito claro. Acredito que nesse universo o compromisso do professor ultrapassa essas fronteiras, considerando a especificidade do atendimento, as circunstâncias e o público alvo, a dimensão do papel do professor deve ser ampliada fortalecendo as ações de articulação, participação e exercício do e no convívio social, ocupando espaços que na maioria das vezes o adolescente desconhece, ou acredita que não tem acesso ou direito de frequentá-los. Apontando para seu pertencimento e influência na sociedade no presente e no futuro, facilitando sua inclusão para quando estiver em liberdade, como ser gregário que somos. 

É imprescindível que existam ações para esse fortalecimento participativo enquanto cidadão sujeito de direitos. Observo na minha prática de 20 anos na socioeducação que isso tem funcionado melhor quando encontramos professores de educação física que inspiram seus alunos, favorecendo o desenvolvimento de habilidades, virtudes e dons que muitas vezes estavam adormecidas, promovendo mudanças de hábitos e comportamentos que resultam em desdobramentos positivos em outros aspectos da vida desses jovens, que por sua vez demonstram maior motivação, mostram-se engajados, com foco em seus objetivos, ampliam a relação de confiança com o professor, que de certa maneira passa ser um mentor. Professores fortalecidos como membros ativos da equipe coesa, que almeja por meio do atendimento integral, o bem-estar, o querer bem do educando, na atenção acima de tudo humanizada. Porque reconhecem a individualidade e valorizam a diversidade, o potencial, e desta maneira favorecem o desenvolvimento das habilidades mais urgentes de serem estimuladas de acordo com o diagnóstico individual, promovendo a verdadeira e efetiva inclusão desde jovem que chega invisível, por conta disso muito vulnerável e não pode sair novamente invisível e ainda pior, estigmatizado, rotulado, desacreditado, discriminado. Portanto o trabalho que é esperado do professor de educação física socioeducativo, é diverso, exige dedicação, compromisso, para que a voz do adolescente seja ecoada, possui outras preocupações para atender/abranger essas tantas necessidades de dimensões diversas, que devem compor um planejamento estratégico maior, mas do qual o professor de educação física deve ser figura presente e atuante, contribuindo principalmente com as ações na sua área de conhecimento, buscando parcerias, fluxos definidos de participação e encaminhamento à rede, envolvido intensamente, mergulhado no olho do furacão da socioeducação e não como um simples/mero apêndice nesse processo. 

Vimos que o universo de atuação no sistema socioeducativo é amplo, ao mesmo tempo contagiante, visceral para aquele que mergulha nesse campo, por ser tão dinâmico, sem rotina e com tantas interfaces. Exige do profissional, além da formação específica em educação física, vocação, dedicação e conhecimentos da área da infância e juventude, adolescências, conhecimentos gerais, sociológicos, filosóficos, psicológicos, jurídicos, de hebiatria, de neurolinguística, de comunicação, de liderança, de gestão de pessoas. Além dessas competências técnicas, precisa desenvolver competências emocionais e comportamentais. Isso requer a formação permanente, na ideologia do conceito Life Long Learning – LLL (Aprendizagem ao longo de toda vida). Exigindo do profissional a disposição de estar sempre em mudança, máxima flexibilidade, solicitude, humildade, coerência e não se acomodar na zona de conforto, estar propício, disponível e preparado para a reinvenção constante, se moldando ao seu público e à realidade dinâmica da mudança permanente, diante da acelerada e alucinante revolução tecnológica, que molda velozmente as exigências da educação para o século XXI! 


O professor Guilherme Astolfi Nico (CREF/SP 055.139 G/SP) é licenciado em Educação Física pela UNICAMP, bacharelado em Direito pela Universidade São Francisco/SP; Especialista em Pedagogia da Cooperação pela Universidade Monte Serrat e em Políticas Públicas e Socioeducação pela Universidade de Brasília. Atua no sistema socioeducativo do Estado de São Paulo, como Técnico da Gerência de Educação Física e Esporte.


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